Olhar de Raposa 🦊 #90
Heartstopper, o que aprendi sobre a vida em um clube de sexo (em 2014) e uma raposa gay no Japão
Semana passada, assisti à segunda temporada de Heartstopper (já escrevi anteriormente sobre uma cena impactante da primeira temporada). Se a primeira temporada foi aquilo que eu queria ter assistido quando adolescente para saber que amor também está disponível para pessoas gays, a segunda toca em questões que mexeram comigo.
Não vou contar o que acontece, mas sinalizarei algumas das conversas que tive a partir do seriado:
para muita gente, sair do armário é uma experiência difícil e dolorosa que precisa ser replicada muitas vezes, de novo e de novo, em cada contexto que estamos inseridos;
ninguém é obrigado a atualizar as pessoas sobre nossa vida, mesmo que essas pessoas sejam da nossa família, ainda que para pessoas queer exista uma expectativa de que sua orientação sexual e identidade de gênero devam ser anunciadas e explicadas assim que entendidas;
quando somos machucados por alguém, especialmente em contextos de ignorância e ódio, como homofobia, às vezes nossa resposta é romper todo o contato com as pessoas responsáveis pela nossa dor, algo que faz sentido para mim como um movimento de autopreservação, mas que me deixa pensativo sobre o espaço que abrimos para quem está disposto a fazer reparações pelo mal que causou;
temas que envolvam saúde mental e existencial precisam ser tratados com cuidado em seriados, filmes e outros produtos culturais, pois arriscam normalizar comportamentos em vez de sugerir a busca por cuidados especializados;
um seriado composto por histórias majoritariamente centradas em personagens queer ainda é extremamente potente, mesmo em 2023;
a descoberta e construção de si acontece de várias formas, inclusive por meio de livros, que podem nos ajudar a nomear e a organizar nossas identidades.
Fiquei muito feliz em conversar com pessoas sobre o seriado e gostaria de continuar conversando. Portanto, se tu assistiu Heartstopper ou algum outro seriado ou filme com foco em pessoas queer e gostaria de conversar a respeito, fala comigo por aqui nos comentários ou lá pelo Instagram.
O tema da sexualidade e dos relacionamentos afetivos está forte nos meus pensamentos. Por conta disso, resolvi trazer um texto que escrevi em 2014 sobre um dia em que fui a um clube de sexo. O texto não tem nada a ver com Hearstopper, no qual sexo não é um tema senão quando eles decidem que não estão prontos para explorar esse aspecto de suas vidas, mas achei pertinente compartilhá-lo.
O que aprendi sobre a vida em um clube de sexo
Sábado fui a um clube de sexo.
Venho pensando, discutindo e escrevendo sobre sexualidade, amor livre e abandono da monogamia há anos, mas sempre de uma distância segura. Eu aqui, falando, e a vida acontecendo lá longe.
Uma série de eventos, porém, me levou a sábado entrar em um clube de sexo. Esse texto é uma tentativa de refletir sobre essa experiência. Não foram poucas as coisas que aprendi.
Dentro das portas do clube
Quando comprei a revista Junior de fevereiro, eu não estava planejando acabar sábado passado no clube de sexo. A Junior, para quem não conhece, é uma revista gay que circula há uns cinco anos no Brasil.
Comprei a revista com um plano em mente: eu queria os anúncios. Já que minha vida gira em torno de questões LGBT, nada melhor do que conhecer quem anuncia numa revista como a Junior, certo? Comprei e, alguns dias depois, separei anúncios de lojas de roupas, spas e clubes de sexo. Fui na internet, pesquisei e anotei alguns links.
Na minha cabeça, eu não estava pronto para visitar um clube de sexo, precisava malhar um pouco e dar uma melhorada no visual [1].
Pelas aleatoriedades da vida, acabei encontrando no sábado à tarde um amigo que fiz há dois ou três anos em Goiânia. Nossa relação começou com uma noite de sexo bêbado e seguiu para o encontro de inúmeras afinidades que até hoje nos alimentam a amizade.
Entre nossas conversas, falei sobre os clubes de sexo que havia pesquisado. Ele me disse que iria a um deles à noite e me convidou. Imediatamente respondi que não, que achava melhor não, que não sabia se ia gostar, que não estava pronto, que pretendia esperar mais e tal [2].
Depois do encontro, fui para casa. Olhei de novo o site do clube de sexo. Decidi que não ia. Depois decidi que ia. Aí pensei de novo e resolvi não ir.
Nesse vai e vem, acabei me convencendo de que a gente só se arrepende do que não faz e que, me conhecendo como conheço, provavelmente escreveria um mês de textos chorando por não ter coragem e outros mimimis.
Fui.
O clube em questão fica camuflado numa rua secundária. É nada mais que uma porta com um número gigante pintado na porta. Meu amigo, que já conhecia, indicou o caminho.
Na recepção, o atendente de uns quarenta ou cinquenta anos (sou péssimo com idades, desculpa) pelado por trás do balcão cobrou a inscrição e nos deu a chave para o vestiário. Nesse clube, meu amigo explicou, as pessoas circulam só de cueca ou nuas.
No caminho para o vestiário, passamos por uma cortina que levava a uma sala de televisão. Dois homens assistiam sentados em sofás, nenhuma roupa escondendo os cacetes enormes e duros. Primeiro susto da noite. (Mas um susto positivo, tem como?)
Seguimos para o vestiário, tiramos as roupas e ficamos apenas de cueca. Eu jamais teria feito isso com tanta naturalidade se estivesse com outros amigos, mas haver começado nossa relação com sexo facilitou o momento [3].
Então subimos as escadas para o bar. O bartender estava lá, nu em pelo e tatuagem, servindo cervejas e preparando caipirinhas. Espalhados em mesas e bancos, vários caras conversavam em pequenos grupos, a maioria de cueca. Nas paredes, televisões de variados tamanhos, cada uma com um filme pornô diferente rolando.
Pedi uma caipirinha. Duas. Três [4].
Já calibrado no álcool, fui com meu amigo para a outra sala.
Ah, a outra sala.
Ambiente escuro com uma série de bancos e camas e pufes, cortinas para criar espaços privados, escadas, cordas… Nas paredes, cestas cheias de camisinhas à disposição dos interessados. No escuro, eu mal reconhecia meu amigo, que dirá as outras pessoas. Eram todos manchas no escuro, formas mal desenhadas de corpos masculinos de vários tamanhos e tonalidades.
Ainda acuado, eu seguia escapando de qualquer um que tentasse me tocar. Desviava, passava longe.
Meu amigo logo se despediu e foi trocar carícias com um cara. Vi de longe a sombra dele sendo chupado e logo um outro cara chegando junto. Voltei a caminhar.
A seguir foi a minha vez.
Eu não sabia quem eram, não sabia nome, idade, altura, peso, o que faziam da vida. Todas as perguntas feitas exaustivamente em aplicativos de pegação gay anuladas naquele momento [5].
Em poucas horas, ninguém mais no clube inteiro estava andando de cueca. Todos pelados, confortavelmente nus [6].
Quando fomos embora, não consegui parar de pensar no que aquela noite poderia significar. Ainda estou pensando. Não foi só uma noite de sexo. Não foi só uma noite de muito sexo.
Foi uma noite de vivência prática do que sempre preguei.
Fora das portas do clube
Eu fui ao clube de sexo no espírito de “viver uma experiência antropológica”. Queria mesmo conhecer esse universo do qual sempre mantive distância, entender como aconteciam as interações e ter material para pensar a respeito.
O simples fato de eu ainda ter dificuldades para narrar publicamente o que fiz e o que deixei de fazer dentro do clube já sugere que ainda tenho reservas no que diz respeito à minha sexualidade.
O que trago aqui, a partir de agora, é a minha leitura de algumas percepções que fiz no clube. Elas são muito menos sobre sexo do que são sobre o (meu) comportamento humano.
[1]
Meu amigo perguntou, rindo: “tu vai esperar um mês para ir ao clube, quando estiver malhado e depilado?”. Eu respondi meio tímido: “na verdade estava pensando em três meses”.
Na minha imaginação, um clube de sexo seria apenas uma versão mais safada de uma boate. Como qualquer gay sabe, a boate é o reino do carão, aquela prática nojenta de olhar, querer alguém e não dar abertura para a pessoa chegar e conversar. E isso num universo de pessoas malhadas e lisinhas.
Eu, magro com projeto de barriga e peludinho, certamente não caberia nesse lugar.
Eu só tomaria coragem de ir, portanto, quando estivesse com um corpo bonito, malhado e liso.
Mentira.
Eu continuaria inventando motivos para não me expor ao julgamento alheio, como se ele tivesse o poder de interferir na minha experiência de vida. E daí se alguém não me achar bonito? Se alguém pensar que tenho mais pelos do que deveria? Vai mudar a minha experiência de alguma forma?
Não. Talvez atrapalhe um pouco meu ego, mas querer ser desejado por todo mundo não é lá muito saudável nem equilibrado, até porque é uma impossibilidade na vida.
Ah, quero fazer academia e me depilar? Beleza. Posso fazer isso. Só preciso tomar cuidado para não tornar essas ações como pré-requisitos para agir. O mundo já oferece desculpas o bastante para que não aja, não preciso inventar outras mais.
[2]
Eu fiquei com medo do clube de sexo e passei um tempão tentando inventar motivos para não ir.
Se não há um bom motivo, não há um bom motivo.
Pode parecer óbvio, mas é algo que muitas vezes a gente esquece e se perde em motivos inventados para deixarmos de fazer as coisas.
Uma boa estratégia é utilizar a pergunta curinga: por que não? Ela pode nos ajudar a descobrir se há um bom motivo para não querermos fazer algo. Se a resposta começa com porque os outros…, é um ótimo sinal de que estamos deixando de agir por medo da opinião alheia e não porque julgamos algo certo ou errado em si.
Aprendi isso lendo A Arte da Não Conformidade, de Chris Guillebeau. Muito do que deixamos de fazer tem a ver com medo de como seremos vistos, como seremos julgados. Não se trata do que pensamos ser certo ou errado, mas sim de medo de enfrentar a sociedade quando escapamos dos caminhos tradicionais de comportamento.
(Pausa: recomendo litros a leitura desse livro. Ele é um dos maiores responsáveis por eu ter iniciado essa viagem louca em busca do meu eu escritor.)
Eu estou pensando em como várias pessoas podem reagir lendo este texto. Ele está conscientemente leve. Eu poderia fazer descrições bastante gráficas sobre o que aconteceu ou deixou de acontecer. Mas não estou fazendo. Estou aqui controlando as palavras e as imagens evocadas. Só há uma resposta para isso: medo do olhar alheio, medo de ser apontado como desprezível, errado, indecente.
(Outra pausa: preciso me perguntar de quem é esse olhar com o qual me importo tanto e por que é tão importante. Arrisco que, se pensar direito, vou descobrir que é só frescura minha. Quer dizer, minha mãe lerá, pessoas interessadas em se relacionar comigo lerão… Só que este sou eu, então não faria muito sentido fingir que não… Faria?)
[3]
Todo mundo sabe que amigo não fica com amigo. Sexo é uma coisa, amizade é outra.
É mesmo? Por que não? (viu, já estou praticando o item anterior)
A única explicação para que amigos não transem são as caixinhas que aprendemos a cultivar pela nossa formação cultural.
Vamos testar um raciocínio? Amigos são pessoas que se gostam e se confiam. Sexo é uma coisa gostosa e que muita gente curte fazer. A base da amizade é o amor. Muita gente diz que a base do sexo deveria ser o amor. Então pergunto: por que não transar com amigos, se rolar tesão?
“Ah, mas não sinto tesão pelos meus amigos”, responde a pinta. Claro, passou a vida separando as caixinhas. Eu também não sinto tesão pelos meus amigos. A não ser que eu tenha transado com eles antes de virar amigo, aí a coisa é mais fácil e corre mais fluida, sem mimimis.
Nossas caixinhas são úteis porque temos medo de que as coisas saiam do controle (um controle que não existe, é ilusório e só nos faz mal; volta e meia a vida esfrega isso na nossa cara). Temos medo de lidar com o indeciso, o indeterminado. Buscamos relações fáceis e, nesse processo, nos encaixotamos.
Acho um desperdício.
Por alguma razão, há quem ache certo negar o prazer, tratando-o como algo imoral e indevido. Ou como algo que só pode ser encontrado em alguns lugares específicos (no casamento, no romance ideal etc.).
[4]
Na festa precisei beber muito para quebrar meus receios. Óbvio, bêbado tem menos limites.
Contudo, sou da teoria de quem faz é a pessoa, não o álcool. Ninguém faz bêbado algo que jamais faria sóbrio. Faz o que gostaria, mas não teve coragem para enfrentar os próprios cacarecos morais (e não é fácil, concordo). Faz o que faria se não precisasse se preocupar com os outros (já que o álcool ajuda a desligar essa preocupação).
Muitas das coisas que fazemos têm a ver com seguir ou não perturbar o modo como os outros nos enxergam, ou como imaginamos que os outros nos enxergam.
Um resumo rápido: isso não é saudável para a nossa cabecinha.
Não tem como fazer bem reprimir aquilo que queremos para nossa vida. Não é por nada que existe a Psicanálise. E sim, nós somos obrigados a reprimir zilhões de coisas para viver em sociedade. Não vou bater em ninguém e isso já é um baita investimento emocional. Precisamos mesmo colocar ainda mais peso na nossa cabeça para, sei lá, não ferirmos a moral e os bons costumes?
[5]
No escuro do clube de sexo as diferenças são diminuídas.
Alto, gordo, magro, negro, branco, novo, velho… essas caixinhas que usamos para separar as pessoas em desejáveis ou deus me livre! tornam-se menos relevantes na sala escura. Lá são seres humanos, todos atrás da mesma coisa: prazer sexual.
Se o propósito for apenas ter prazer, por que limitar essa possibilidade apenas a pessoas que se encaixem num perfil determinado?
Além disso, percebi também que o escuro do clube me facilita outro aspecto.
Eu gasto muito tempo interagindo com pessoas em busca de sexo casual. É um investimento grande de tempo: achar uma pessoa, começar a conversar, perceber alguns pontos em comum, encaixar as preferências, um achar o outro atraente, os dois marcarem um lugar para encontrar etc. Nesse processo, muita energia é perdida, uma energia que poderia estar sendo investida em outras coisas que certamente são mais urgentes para mim. Como escrever.
O clube de sexo acaba com isso de forma rápida e segura. Bateu tesão? Transa.
No resto do tempo, posso amar meus amigos, minha arte, minha vida.
(Tudo bem, não serei ingênuo: muita gente, eu incluído, ainda separa as pessoas entre desejáveis ou não mesmo na sala escura. Além do mais, esse não é um espaço todo democrático e lindo, especialmente se considerarmos que é um espaço unicamente masculino. Mais um privilégio de ser homem, pelo jeito.)
[6]
Quando saí da sala escura pela primeira vez sem cueca, não percebi que estava nu senão até momentos mais tarde. E não percebi porque ninguém ficou olhando, estranhando, cuidando.
A nudez deixou de ser um problema.
Conversei com meu amigo e ele também estava pelado. O mundo não acabou. Todo mundo ao redor estava pelado e a vida continuou existindo.
Passei tanto tempo aprendendo a ter vergonha do meu corpo (seja pela comparação constante com os corpos explorados na mídia, seja pelas pregações que mandam proteger as ridículas inocências), que é um alívio saber que os julgamentos no olhar alheio foram brevemente interrompidos (ou no mínimo bastante reduzidos).
Depois das portas do clube de sexo
O mundo do clube de sexo é perfeito?
Claro que não.
Tudo o que temos aqui fora continua existindo lá dentro. Preconceitos, resistências, frescuras. Caixinhas.
Entretanto, é inegável que sofri uma transformação após esta experiência.
Muitas das barreiras que eu mesmo colocava entre mim e experiências novas foram rachadas. Gostaria de dizer que foram destruídas para sempre, mas sei que meus mimimis são mais fortes do que apenas uma noite.
Por isso o desafio é seguir caminhando e tentando, dia após dia, desconstruir as nossas barreiras, as coisas que me impedem de ir atrás do que queremos.
Quem sabe assim, um passo ou um sexo de cada vez, eu consiga encontrar uma vida mais autêntica, mais de acordo com o que eu acredito.
Uma raposa escrevendo em inglês
Ando pensativo sobre a ideia de escrever uma newsletter em inglês.
Já decidi a temática: histórias de um brasileiro gay poliamoroso no Japão. Inclusive, já escrevi a primeira edição, mas ainda não enviei porque quero fazê-lo quando tiver certeza que poderei manter o compromisso de publicação – cuja periodicidade ainda será definida – sem prejudicar o Olhar de Raposa.
Se te interessar, já é possível se inscrever: A gay fox in Japan.
Ao contrário do Olhar de Raposa, essa newsletter terá uma opção paga. Todos os textos serão disponibilizados gratuitamente, mas o arquivo de textos anteriores ficará disponível integralmente apenas para pagantes. Desta forma, quem assinar poderá ler todos os novos textos e o arquivo ficará como um mimo disponível para quem contribuir financeiramente com minha vida no Japão.
Minha ideia é que a escrita em inglês me conecte com pessoas que não leem em português – caso que provavelmente será o da maioria das pessoas que conhecerei fora do Brasil. Não pretendo apenas traduzir o que compartilho em português, mas criar novos textos.
Em grande parte, quero que a escrita da newsletter em inglês me apoie na construção de novas conexões com outras pessoas que escrevem, que se interessam pelas temáticas que me movem e que podem descobrir meu trabalho como facilitador de grupos.
Eu já sei que quero fazer isso. A minha dúvida, no momento, é se conseguirei de fato fazê-lo sem prejudicar meus outros planos de vida. Creio que em breve descobriremos.
Super obrigado pela companhia!
Com carinho,
Tales
Amo te ler, Tales, porque sinto como se estivesse conversando com um grande amigo. É o que sinto que somos, mesmo nunca tendo nos conhecido. Assisti heartstopper e tbm refleti sobre aqueles pontos que você apontou. Tive vontade de ir a uma boate de swing, mas não fui tão corajosa quanto você - me mantive na minha caixinha; mas compartilho de muitas das suas reflexões. Como é difícil ser livre, não é?