🦊 Sobre sentir-se motivado
Ou: recuperando um texto de 2017
Semana passada compartilhei algumas histórias em quadrinhos que criei, mas não contei que no início havia criado um perfil em inglês no Instagram para compartilhá-las e, inclusive, tenho algumas histórias que ainda não foram traduzidas de volta para o português (assim como hoje tenho histórias novas em português que não ganharam versões em inglês).
Ainda estou falando disso porque mostrei a um amigo aqui no Japão esse perfil do Instagram e, alguns dias depois, fui surpreendido com o compartilhamento de um dos quadrinhos em seus stories.
Coisa boba, coisa pequena, mas percebi uma chama reacendendo em mim: a vontade de produzir para ganhar mais leitores e seguidores.
Veja bem, eu adoro receber atenção, até porque atenção é uma das formas mais evidentes como amor pode ser expressado (escrevi mais sobre amor nesta carta digital).
Quando recebo atenção, rola uma reação aqui dentro de mim e passo a querer mais. Faz sentido, né? O meu problema começa quando a vontade intrínseca é substituída pela motivação extrínseca de ser lido e compartilhado, de mudar a vida das pessoas, de receber elogios etc. E se não me cuido, a motivação extrínseca logo vem e derruba minha motivação intrínseca.
Por conta disso, achei por bem lembrar (a mim mesmo) sobre o que produz a motivação intrínseca. Resgatei um texto que escrevi em 2017 no meu perfil do Medium, que segue quase na íntegra.
Nota: muitas vezes, escrevo sobre ideias que não quero perder de vista. Minha escrita é autobiográfica e autoajuda no sentido mais direto dessas palavras.
A tal da motivação
Estar motivado significa basicamente que nossa energia flui com mais facilidade na direção de realizar determinadas ações. Querer fazer algo é um tempero poderoso na constituição de uma experiência prazerosa e bem-sucedida. Querer fazer nos dá energia para efetivamente fazer.
Se não queremos fazer alguma coisa, provavelmente encontraremos milhares de desculpas até que essa coisa deixe de fazer parte de nossas vidas. Meus dois últimos empregos formais foram assim: eu tanto não queria estar neles que resisti apenas cinco meses em cada um antes de pedir demissão. Os dois empregos, cinco meses; esse foi meu limite.
A motivação pode aparecer de forma extrínseca ou intrínseca. Quando falamos no chicote (punição) ou na cenoura (recompensa), estamos falando de motivação extrínseca, aquela que vem de fora. Ela tem o seu lugar, especialmente quando falamos de resultados rápidos em trabalhos que não exigem pensamento divergente, ou seja, naquelas operações menos criativas.
Neste texto, estou mais interessado em encontrar a motivação intrínseca, aquela que vem de dentro e nos deixa cheios de vontade de agir. Ela está dividida em pelo menos quatro quatro elementos, os quais já escrevi neste texto, ao falar do meu irmão, e vou recuperar agora:
Seja para salvar o mundo ou para vencer os adversários (sentido), ele dedica muitas horas se desenvolvendo (maestria) nos jogos que escolhe (autonomia) e tem muitos amigos com os quais pode contar na comunidade de jogadores (relações).
Sentido
A narrativa é a linguagem da experiência. Nós contamos histórias para dar sentido para qualquer coisa que façamos ou sejamos. Esses dias me perguntaram por que eu seria um “game expert” (aviso: eu não me considero assim, mas fui apresentado nesses termos) e eu precisei contar uma história que oferecesse um sentido para isso.
Narrativas têm início, meio e fim. O que o sentido faz é nos apontar uma direção para esse fim, mesmo naquilo que fazemos pelo prazer de fazer. Eu estudo narrativas e ficções porque acredito que elas são a base da organização do nosso mundo. Eu estudo gamification porque desejo piratear a forma como penso e pratico educação. Eu pratico aikido porque encontro nesta arte marcial uma tradução corporal para a comunicação não-violenta (e porque meu corpo fica mais leve e gostoso, também).
O sentido aponta uma direção para onde caminhar. Sem a percepção desse sentido, caímos sentados de braços abertos perguntando “pra quê?”.
No meu último emprego, quando fui tutor na educação a distância em uma grande universidade particular de São Paulo, eu era responsável por 1500 estudantes. Com que qualidade eu conseguia avaliar as atividades realizadas por eles? Quase zero, meu trabalho era corrigir atividades o mais rápido possível para cumprir o prazo — sem uma verdadeira preocupação com o processo pedagógico —, então não via sentido naquilo.
Maestria
O ciclo da motivação é mais ou menos o seguinte: eu faço algo, tenho sucesso, sinto-me motivado a fazer mais. Ser bom em alguma coisa nos ajuda a querer fazer mais. Esse ciclo pode começar em qualquer ponto. Talvez eu seja reconhecido por um sucesso que nem alcancei ainda (alguém falou game expert?); para dar sentido a esse nome e para ser bom o bastante e merecer o título, eu me sinto motivado a estudar e a praticar.
Eu tenho facilidade para escrever e isso sempre me trouxe de volta à escrita, mesmo após sete anos parado. Eu era bom o suficiente em aikido para que mesmo depois de doze anos sem treinar eu tenha me sentido motivado a voltar. Não fui começar kung fu nem karate porque precisaria iniciar do zero, mas voltei para o aikido e me sinto super bem em saber que já tenho alguma habilidade treinada.
Estar motivado, portanto, parece envolver a prática daquilo que consigo fazer bem. Ou achar um jeito de aprender rápido. Eu sou o tipo de pessoa que desiste frente a desafios que parecem complicados demais, então a coisa mais inteligente que posso fazer é encontrar modos de facilitar meu aprendizado, aumentar a diversão e diminuir a ansiedade frente a um problema complexo, pelo menos até que minha habilidade cresça e eu possa chegar ao estado de fluxo (dois textos meus sobre isso: os 8 elementos do estado de fluxo e caminhos do flow).
No último emprego, eu levei duas semanas para dominar o Blackboard, o ambiente virtual de aprendizagem que utilizávamos. A parte da correção das atividades não levou muito mais do que isso. O desafio da correção, para além do tempo escasso, se mantinha relativamente estável, então logo minha habilidade era muito maior que o desafio e o meu estado de humor era o tédio. Daí não dava, né?
Autonomia
Nós somos criaturas livres num espaço amplo, já disse o Gustavo Gitti no CreativeMornings sobre amor. Quando somos obrigados a fazer alguma coisa, especialmente se não tem sentido e se está além ou aquém das nossas habilidades, a tendência é nos sentirmos presos.
Esse é um elemento básico dos jogos: eles sempre são voluntários. Se eu sou obrigado a jogar, a diversão se perde.
Hoje em dia eu tenho o privilégio de querer fazer tudo o que faço — o que é muito diferente de só fazer o que eu quero. Eu quero treinar aikido, trabalhar com jogo de mobilização social, escrever, jogar RPG, estudar japonês, organizar e participar de grupos de estudos, namorar, encontrar meus amigos, organizar e facilitar encontros e oficinas de escrita.
Isso não quer dizer que não haja coisas chatas no meio desse caminho: tem horas que é um saco fazer divulgação dos meus cursos. Eu reviro os olhos (e quem já me encontrou pessoalmente sabe exatamente a frequência com a qual eu faço isso) quando tenho que lidar com pessoas indispostas (é contagiante, inclusive). Por aí vai: mesmo os trabalhos mais fantásticos da vida terão partes chatas.
Como tutor na educação a distância da grande universidade, eu tinha muito pouco poder de atuação para mudar qualquer questão relevante no processo que estava acontecendo. Essa experiência basicamente indicava que meu lado humano e criativo estava fora da equação, o que para mim foi um grande “não” na hora de decidir continuar trabalhando lá.
Relações
Estar com outras pessoas é um grande motivador. Pessoas que nos entendem, que compartilham nosso senso de sentido, que reconhecem nossas habilidades e são habilidosas por si só.
Dizem por aí que somos a média das pessoas com as quais convivemos, então procuro me relacionar com pessoas que provocam e estendem meus limites de compreensão do mundo. Isso é algo que procuro em qualquer lugar. No caso do meu último emprego, era o principal motivador intrínseco que sustentava minha permanência para além do primeiro ou segundo mês: eu convivia com pessoas fantásticas que me faziam sorrir, aprender e me divertir — dá pra pedir mais?
Nota: acabou a viagem por 2017 e estamos de volta a 2023 a partir deste parágrafo.
Após reler meu texto, percebo que hoje vejo o mundo de forma distinta. Não por inteiro, nada completamente radical, mas houve mudança. Isso me motivou a estender a reflexão, pois estou sempre em busca de melhorar minha forma de existir enquanto ser humano (sentido, maestria), respeito o fato de que posso mudar conforme a vida caminha (autonomia) e, claro, gostaria de conversar e refletir junto sobre essa questão (relações).
Eu, eu, eu
Essa é uma nota pequeninha: nos últimos tempos passei a atentar para a quantidade de eus que aparecem no meu texto. Meu exercício pessoal tem sido reduzi-los não apenas na escrita (compare 2023 e 2017 para perceber a diferença), mas também na minha abertura para escutar os outros sem interromper ou responder com a minha perspectiva. Esse é um exercício em andamento e, me parece, uma prática que continuará precisando de atenção pelo resto da vida.
Sentido
Escrevi que
Sem a percepção desse sentido, caímos sentados de braços abertos perguntando “pra quê?”.
No texto, dei a entender que precisamos estar em movimento rumo a algum lugar para encontrar sentido. Atualmente venho tentando encontrar sentido também em permanecer “no mesmo lugar”, em volta das mesmas pessoas, vivendo rotinas e cotidianidades.
Inclusive, hoje penso que “porque eu quero” pode ser sentido o suficiente. 🙂
Maestria
Escrevi
O ciclo da motivação é mais ou menos o seguinte: eu faço algo, tenho sucesso, sinto-me motivado a fazer mais. Ser bom em alguma coisa nos ajuda a querer fazer mais.
Percebi uma semelhança grande entre essa ideia e o que descrevi no início desta carta, sobre ter meu trabalho compartilhado na internet:
percebi uma chama reacendendo em mim: a vontade de produzir para ganhar mais leitores e seguidores.
Enquanto maestria trata da capacidade de fazer algo, quando penso em ter sucesso é fácil conectar essa ideia com os resultados externos dessa capacidade. Maestria tem a ver com ser capaz de se expressar bem em um texto, por exemplo, não necessariamente com esse texto ser lido, reconhecido e compartilhado. São duas coisas diferentes, porém facilmente confundidas – inclusive por mim, com mais frequência do que gostaria de admitir.
Autonomia
Escrevi
Quando somos obrigados a fazer alguma coisa, especialmente se não tem sentido e se está além ou aquém das nossas habilidades, a tendência é nos sentirmos presos.
Ainda concordo com isso.
Não é por nada que escrevo em busca de uma vida mais livre, honesta e conectada.
Relações
Escrevi
Dizem por aí que somos a média das pessoas com as quais convivemos, então procuro me relacionar com pessoas que provocam e estendem meus limites de compreensão do mundo.
Recentemente notei que as pessoas que mais quero por perto são aquelas que me ajudam a enxergar o mundo com mais qualidade, que me provocam, mas que me aceitam do jeito que sou. Pessoas cuja provocação não vem para tentar “me corrigir”, mas para contribuir com minha existência.
Escrevo publicamente porque quero organizar meus pensamentos e porque quero me conectar com quem me lê. Esse é outro elemento da motivação que é fácil de misturar com o retorno recebido – se ninguém curtiu ou comentou, então as relações não aconteceram e é melhor desistir logo e ir tentar outra coisa!
Autocompaixão
Continuo recitando meu mantra atual: que eu possa ser livre e leve, lúcida e honesta, compassiva e conectada.
Durante bastante tempo, meu objetivo de vida era estar certo, corrigir meu jeito de existir para que fosse o mais coerente possível, mesmo que aos poucos.
Hoje tenho buscado operar em outra frequência. Ainda quero lucidez, sem dúvida, porém quero ainda mais cuidar de mim. Ser gentil comigo. Reconhecer que se perdi a motivação para algo, hei de me permitir tempo para recuperá-la.
E, curiosamente, quando acolho essa temporalidade mais fluida e receptiva, percebo-me motivado a continuar criando, escrevendo, desenhando, conversando. No meu tempo, não na urgência capitalista de entregar um conteúdo novo toda semana ou senão falhar enquanto criador de conteúdo.
Motivação intrínseca e autocompassiva.
E já que essa carta digital foi toda sobre recuperar textos e referências do passado, resolvi encerrar hoje com uma tirinha que criei há algum tempo 😊
Obrigado pela leitura ❤
Com carinho,
Tales