Por esses dias me abraçou uma pergunta boa: o que seria diferente se amássemos todos os seres vivos de forma incondicional?
Vários foram os caminhos que me trouxeram até esse reflexão. As mais recentes foram as leituras (algumas parciais) dos livros What we owe the future, de William McAskill (numa tradução livre, “O que devemos ao futuro”), Manual de mindfulness e autocompaixão, de Kristin Neff e Christopher Germer, A revolução do altruísmo, de Matthieu Ricard, e O mundo poderia ser diferente, de Norman Fischer.
Na carta digital de hoje, quero refletir contigo sobre o que entendo por amor incondicional e o que isso tem a ver com criar um mundo melhor não só para mim e para os meus, mas também para as demais vidas que desconheço.
Esse tal de amor
Se falo em cadeira, mesa, armário ou árvore, a compreensão do que estou dizendo é mais ou menos clara porque há uma correlação com a realidade concreta. Mesmo que existam incontáveis variações, há algo que pode ser tocado, cheirado e lambido. O mesmo não é verdade quando falamos de conceitos abstratos, incluindo aí os nomes que damos aos sentimentos. Tristeza, saudade e amor são coisas que a gente sente e as outras pessoas até entendem, mas nunca dá para saber se estamos apontando para a mesma coisa.
Por isso, acho importante encontrar uma realidade compartilhada a partir da qual possamos falar sobre o que é amor.
Sempre que procuro entender algum conceito, gosto de começar pelo dicionário. Desta vez, escolhi o Priberam, e trarei a seguir algumas das suas definições.
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1. Sentimento que induz a aproximar, a proteger ou a conservar a pessoa pela qual se sente afeição ou atração; grande afeição ou afinidade forte por outra pessoa (ex.: amor filial; amor materno). = AFETO, AFEIÇÃO ≠ ÓDIO, REPULSA
Já gostei dessa primeira acepção, pois entendo amor como um sentimento que convida à ação (“induz a…”). Nada nunca é tão simples, porém penso que amor sem movimento corre grande risco de virar outras coisas que considero menos nobres e interessantes, como controle e fixação.
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2. Sentimento intenso de atração entre duas pessoas. = PAIXÃO
É normal confundir amor com tesão e paixão, esses sentimentos intensos que nos sequestram a racionalidade. Eles têm seu valor, com certeza, mas acho prudente pensarmos sobre amores de fervura lenta e constante, já que nem tudo precisa ser uma explosão repentina de sensações – não importa o quanto as histórias que consumimos nos repitam discursos de intensidade.
Às vezes confundimos também amor com intimidade, e como paixão está associada com amor, isso explica a resistência dos meninos em se olharem por um minuto durante a atividade que recentemente propus na escola. Vai que alguém acha que dois garotos heterossexuais estão se apaixonando um pelo outro, já imaginou o drama?
Se não imaginou, dá tempo de ver Heartstopper na Netflix ou buscar os quadrinhos na internet. 😉
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3. Ligação afetiva com outrem, incluindo geralmente também uma ligação de cariz sexual (ex.: ela tem um novo amor; anda de amores com o colega). [Também usado no plural.] = CASO, NAMORO, RELACIONAMENTO, ROMANCE
Se amor pode envolver paixão, nem preciso dizer que pode envolver “uma ligação de cariz sexual”: aquela vontade de ficar pertinho, de roçar pele com pele, de compartilhar bons momentos e gozar junto.
Meu problema com essa noção é quando a etiqueta que colamos sobre uma ideia específica de amor passa a limitar aquilo que podemos viver com outras pessoas. “É amigo então não pode transar”, por exemplo, é uma ideia irritante que, de tantas vezes repetida, às vezes até adquire caráter de verdade.
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4. Ser que é amado.
Jeitinho carinhoso de chamar alguém, não podia faltar, né?
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5. Disposição dos afetos para querer ou fazer o bem a algo ou alguém (ex.: amor à humanidade; amor do torrão natal; amor pelos animais). ≠ DESPREZO, INDIFERENÇA
Aqui chegamos à definição que melhor traduz o entendimento que tenho de amor: querer e fazer bem a algo ou alguém. O dicionário traz mais pelo menos sete outras definições, porém essa me parece a mais leve e singela de todas.
Posso inclusive trocar a pergunta inicial para: o que seria diferente se amássemos quiséssemos e fizéssemos bem de a todos os seres vivos de forma incondicional?
Entretanto, o que significa fazer bem?
Amor livre e incondicional
Gosto muito de uma ideia que aprendi com minha amiga Mari Pelli sobre buscar e incentivar aquilo que gera mais vida. Com isso em mente, fazer bem não é aplicar sobre os outros aquilo que acho certo e correto, mas cultivar um senso de possibilidade e potência. Fazer bem, nesse entendimento, é apoiar as pessoas para que tenham experiências de vida melhores, mais ricas e frutíferas.
Aprecio algumas definições que encontrei no livro Como ser anticapitalista no século XXI, de Erik Olin Wright. Cito uma outra carta digital minha sobre dinheiro:
Erik apresenta três valores fundamentais para criticar a moralidade do capitalismo, resumidos desta maneira:
em uma sociedade justa, todas as pessoas teriam amplo e igual acesso aos meios materiais e sociais necessários para viver uma vida plena [... e] as gerações futuras devem ter, no mínimo, o mesmo acesso aos meios materiais e sociais necessários para obterem vidas plenas que a geração atual possui;
em uma sociedade totalmente democrática, todos teriam amplo e igual acesso aos meios necessários de participar na tomada de decisões substantivas sobre aquilo que afeta suas vidas;
comunidade/solidariedade expressa o princípio pelo qual as pessoas devem cooperar umas com as outras não apenas por aquilo que recebem individualmente, mas por comprometimento real com o bem-estar dos outros e por um senso de obrigação moral de que isso é o certo a ser feito.
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☝ Alguém discorda de alguma dessas ideias?
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Penso amor como algo que não é individual ou restrito a relações interpessoais. Amor pode ser uma forma de pensar nossos sistemas e instituições, e é aí que entra a minha crítica à monogamia.
Destaco que monogamia não é a escolha de duas pessoas firmarem um relacionamento afetivossexual que não inclua outras ou de restringirem suas práticas sexuais a apenas uma parceira – monogamia é um sistema de valores que exige certos comportamentos e pune, inclusive socialmente, quem os ignora.
Já que hoje estou cheio das citações, vamos com mais algumas. Desta vez de um texto meu anterior ao Olhar de Raposa:
Acredito que amar é querer bem, algo muito diferente de querer que as pessoas estejam só conosco e para sempre. Amor não é posse.
[…]
Contos de fadas e filmes vivem nos trazendo a mesma história: quando A ama B, os dois devem ficar juntos para sempre, pois só assim serão felizes. Não há outra possibilidade de amar, não há outro jeito de ser feliz.
Essa é uma maldade terrível que nos ensinam.
Amar não tem nada a ver com ser dono de outra pessoa.
Amar não tem nada a ver com ciúmes.
Amar não tem nada a ver com depender de outra pessoa.
Essas coisas se chamam posse, insegurança e vício.
Se eu te amo e o melhor pra ti é estar longe de mim agora, vai, vive. Vai doer, vou chorar, mas entenderei porque te amo.
[…]
Sensação boa de saber que o errado não é amar e ser amado, mas sim ser amarrado. O amor não é uma corda nem uma gaiola.
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Cito também meu (próprio) texto favorito sobre esse tema, Amor entre aspas:
Isso porque o amor é um presente, não uma cobrança. Amar é querer bem, é ter cuidado pelo outro. O contrário de amor não é o ódio, como muitas vezes acreditamos, mas a indiferença, a negação da existência e da humanidade da outra pessoa. Se te amo, te reconheço enquanto ser humano. Se não te amo, te ignoro, te desprezo.
[…]
Quando amamos, incluímos a(s) outra(s) pessoa(s) em nossa vida. Digo outra(s) porque amor não é algo exclusivo, finito, que só possa ser oferecido a uma pessoa por vez.
Isso mesmo, não importa quantos filmes nos ensinem que devemos escolher uma única pessoa para amar, eles estão errados. Podemos amar mais e melhor.
Infelizmente, amar mais e melhor não é fácil, a começar porque confundimos amor com prisão. Se eu amo, devo ser amado de volta. Se eu me entrego, espero que a pessoa se entregue também. Se eu me limito (sob a desculpa de amar), espero que a pessoa também se limite. Logo, nessa visão de amor, amar é prender a pessoa. O que pode ser ótimo, gostoso e excitante… por um tempo.
Aliás, uma das piores ervas daninhas da nossa cultura é o desejo do felizes para sempre. Nada é para sempre, crianças, nem o amor nem nossas vidas.
Aqui e também lá
Tenho buscado formas melhores de existir. Melhores no sentido de “gerar mais vida” para mim e para outras pessoas, próximas e distantes. Claro, é mais fácil amar quem está pertinho, quem nos afaga, quem nos ama. Entretanto, por que não amar também quem eu não conheço?
Por que não, sempre que possível, buscar melhorar a vida de pessoas além do meu alcance geográfico ou temporal? Pessoas em outros continentes e comunidades, pessoas que hão de nascer – até porque é bem possível que muito mais pessoas venham a nascer no futuro do que as que existem hoje.
Se amo, estimulo a autonomia – inclusive para partir.
Controle e restrição, da maneira como entendo a vida, são formas distorcidas de amor.
Meu sonho, aliás, é tornar-me capaz de amar a todas as pessoas, independentemente de quem elas sejam ou do que elas tenham feito. Se assim for, que tantas coisas poderemos fazer, criar ou mudar para contribuir para que mais viventes tenham existências melhores?
Então amar é deixar todo mundo fazer o que quiser?
Imaginei que essa pergunta poderia aparecer, já que vem tanto à tona quando converso sobre não-violência. Assim como no paradoxo da tolerância, elaborado por Karl Popper, há limites a serem respeitados para que o amor e a bondade não sejam atropelados por pessoas que defendam outros valores.
As ações de alguém vão machucar ou ferir outro alguém que não consentiu? Faz todo sentido agir para impedir essas ações de acontecerem. Interromper, mesmo. Isso obviamente terá uma forma diferente em cada caso, desde puxar uma criança forçosamente da frente de um caminhão em movimento até aprisionar um humano indisposto a conviver pacificamente com os outros.
O que me parece importante manter em mente, nesses casos, é que a intenção jamais seja a de punir. Se quero uma sociedade baseada em amor e bondade, creio que faz sentido praticá-los inclusive com quem me fez mal, na medida em que não tolere, possibilite ou facilite que ações nocivas continuem.
Acredito que pessoas devam ser responsabilizadas por suas ações e pelas consequências delas, e também convidadas a repararem os danos causados. Nosso sistema prisional, por exemplo, antes de qualquer coisa deveria ser um sistema socioeducativo. Atualmente, não o é, e esse é um tema para voltarmos a conversar a respeito no futuro.
Para hoje, quero encerrar com uma pergunta: quando exerço força sobre outra(s) pessoa(s), faço isso para cuidar de alguém ou porque quero punir?
Uma resposta honesta a essa questão pode nos levar longe. 💕
Imagem da semana
A rainha Elizabeth II, monarca do Reino Unido, faleceu esta semana após sete décadas de reinado. Essa senhora fofinha em sua sala, aquecida pela lareira enquanto segura sua bolsinha preta e se apoia na bengala, esteve à frente de uma nação cuja riqueza foi conquistada à base do sangue e da dor de suas colônias.
No mundo em que quero existir, não há lugar para algumas pessoas serem consideradas realeza enquanto outras são consideradas comuns.
Para olhar por aí 🧐
Como debater melhor
Dialogar e debater não precisa ser sobre vencer uma disputa e mostrar que a outra pessoa está errada. Aliás, os melhores diálogos são aqueles em que as pessoas contribuem para aprender algo juntas. Isso é o que sugere este artigo do The Guardian:
"The highest compliment from someone who disagrees with you is not, “You were right.” It’s “You made me think.” Good arguments help us recognise complexity where we once saw simplicity. The ultimate purpose of debate is not to produce consensus. It’s to promote critical thinking."
Tradução livre: “O maior elogio de alguém que discorda de você não é ‘você estava certo’. É ‘você me fez pensar’. Bons argumentos nos ajudam a reconhecer complexidade onde antes víamos simplicidade. O propósito final do debate não é produzir consenso. É promover pensamento crítico.”
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Anime revelado
Usei uma imagem na carta digital anterior e não sabia a origem. O Fabiano descobriu, trata-se de um anime chamado Masamune-kun no Revenge (“A vingança de Masamune”).
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Slime superpoderosa
Nos últimos dias maratonei a primeira temporada de That time I reincarnated as a slime, um anime sobre um moço que morre e acorda em um mundo mágico na forma de uma gelatina ambulante. É um anime leve e fofo, os desafios são resolvidos sem muito drama e a história se desenvolve conforme o protagonista tenta criar uma cidade em que criaturas comumente consideradas monstros possam viver em paz – entre si e com seus vizinhos.
Achei fofo e estou me preparando para começar a segunda temporada. 💧
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Com carinho,
Tales
Oi, Tales. Já há algum tempo acompanho alguns dos seus textos. E cada vez mais me identifico com sua forma de pensar e se expressar. Obrigada por se dedicar a compartilhar suas perceções.