A frase mind the gap (“perceba / cuidado com o vão”) foi cunhada pelo sistema de metrô inglês em 1968 para alertar passageiros sobre a distância entre a plataforma e o trem, pois um passo em falso poderia causar acidentes (obrigado, Wikipedia).
Na correria do dia a dia, esse é um espaço fácil de perder de vista.
No livro More than Two - A Practical Guide to Ethical Polyamory, os autores apresentam a ideia de mind the gap de uma forma diferente: como um convite a observar de forma compassiva a distância que existe entre quem nós somos hoje e quem almejamos nos tornar.
Como alguém que gostaria de ser uma pessoa melhor do que é, esse exercício de perceber a distância entre minha posição atual e aquilo que sonho me tornar já foi disparador de muito autoflagelo. Diversas vezes me peguei pensando que não sou ________ (preencha aqui o seu julgamento favorito da vez) o suficiente porque falhei em sentir, pensar ou agir de determinada maneira.
No campo dos relacionamentos afetivos, por exemplo, muito já me critiquei e questionei sobre minha incapacidade de lidar com ciúmes e minhas tentativas de limitar as possibilidades de vida dos meus parceiros para que eu me sentisse mais seguro.
Essa maneira de mind the gap me causou um bocado de dor.
Afinal, como não me sentir mal quando tenho lucidez o suficiente para saber que não sou quem gostaria de ser? É um prato cheio para a síndrome de impostor!
O que os autores do More than Two propõem, porém, é que olhemos para o vão de forma compassiva, amorosa, bondosa, respeitosa. Reconhecer que ainda não sou ou estou como gostaria de ser ou estar não precisa ser um atestado de falha, insuficiência ou fraqueza.
Ao perceber o vão entre quem sou e quem quero ser, posso fazer a escolha de me acolher e de entender que há um processo em andamento. Que eu estou em processo, sempre, contínuo, e que muitas vezes ainda hei de não alcançar o que almejo.
Eu sinto ciúme e inveja.
Eu imagino cenários destrutivos.
Eu sinto vontade de monopolizar pessoas, coisas e relacionamentos.
Eu sinto vontade de me proteger, de separar, de que o mundo inteiro exista apenas para atender às minhas necessidades e dane-se o resto.
Eu sinto medo de ficar sozinho.
Penso que compaixão e autocompaixão exigem curiosidade e imaginação. Mesmo que eu sinta medo e dor e vontades de coisas que não condizem com o que quero para mim e para o mundo, posso reconhecer que esse é apenas um momento. Às vezes, uma série longa de momentos, tão longa que parece que nunca deixarão de ser assim e que serei uma pessoa ciumenta para sempre. É aí que entram a curiosidade e a imaginação.
A curiosidade de querer saber que outras formas de existir são possíveis, que outros modos de fazer eu posso tentar, que outros sentimentos meu corpo pode produzir e sustentar. A curiosidade de entender por que outras pessoas sentem, pensam e agem de jeitos tão infinitamente distintos dos meus, quais experiências de vida ajudaram a moldar o caminho de cada pessoa, que tantas formas de coexistir em harmonia ainda não descobrimos.
A imaginação de mundos melhores possíveis, de bolhas de utopia, de sonhos e horizontes a serem buscados. A imaginação de uma vida em que eu consiga ser livre, leve, lúcida, honesta, compassiva, conectada e corajosa. A imaginação de existências em comunidades amorosas e inclusivas.
Imaginação e curiosidade andam de mãos dadas.
Elas apontam para possibilidades que cuidam não só de mim, como também das pessoas que habitam minha vida.
Quando penso na distância entre quem sou hoje e quem gostaria de ser de forma compassiva, com curiosidade e imaginação, não estou preocupado em reconhecer todas as maneiras como não fui bom o bastante. Quando penso nesse vão, me ponho a imaginar, de forma curiosa e criativa, que pontes posso construir rumo a um futuro em que consiga fazer escolhas mais alinhadas com o que busco.
Nesse porvir, encontro o conforto e o sustento necessários para continuar tentando.
Começou o curso de escrita compassiva
Quinta-feira (do Brasil, aqui no Japão já era sexta, então foi ontem) começamos o novo curso do Ninho de Escritores, focado em escrita compassiva. As duas horas do encontro passaram voando e nem tivemos tempo de fazer tudo o que havia planejado, mas acredito que tivemos uma boa experiência.
Para dar um gostinho de como foi, aqui estão alguns comentários sobre o que as participantes apreciaram no encontro:
As portas para novas participantes estão abertas, basta se inscrever por meio deste formulário (onde também é possível encontrar mais informações, como dias e horário). E se quiser saber mais, conversa comigo deixando um comentário ou respondendo ao e-mail.
Muito obrigado pela companhia e pela leitura.
Com carinho,
Tales 💕
Que delícia de texto e reflexão! Estou aqui pensando no meu “gap”