Bom dia,
Minhas últimas cartas digitais aqui no Olhar de Raposa rondaram o mesmo tema: mudança. Falei sobre fazer as malas, sobre perceber grandes mudanças e sobre meu plano de mudar para o Japão. Escrevi também sobre como estou olhando para meus relacionamentos afetivossexuais de outra forma e sobre perceber a distância entre quem somos e quem queremos ser de forma mais compassiva. Além, é claro, de por que eu gosto de raposas.
Hoje não será muito diferente. Ainda estou em Porto Alegre e quero contar algumas experiências recentes que estão se alimentando dessas mudanças todas.
Vem comigo?
Era um sábado, ainda em São Paulo. Ayrton e eu estávamos em casa depois de termos comido café da manhã almoço em um brunch em São Paulo. Não tínhamos nenhum outro plano para o final de semana e ele queria ficar em casa para descansar. Eu queria fazer alguma coisa, mas não sabia o que.
Olhei meu telefone: nenhum convite. Ou ninguém que me conhece estava fazendo alguma coisa em São Paulo, ou eu não estava sendo parte dos pensamentos dessas pessoas na hora de fazer coisas. Se eu não fizesse nada, continuaria sem fazer nada. Parece bobo e óbvio – talvez porque seja –, porém naquele momento percebi que meu antigo hábito de ficar entocado em casa esperando convites não serviria para construir a vida que quero viver.
A vida que quero viver é gregária (aqui uso a palavra confiando no Google, que me explica: “3 Que vive em bando: Os flamingos são aves gregárias. 4 fig Que tem qualidade para relacionar-se com outras pessoas; sociável: O homem é um ser gregário por excelência”).
Corta a cena, estou em Porto Alegre e desde que cheguei estou marcando encontros com amigos e pessoas novas todos os dias, pelo menos um encontro por dia, às vezes mais de um. O custo de energia para fazer isso é alto, não estou acostumado, chego em casa uma pedra de tanto sono, aí acordo cedo no dia seguinte para trabalhar e repito a dose.
Estou mais perto da vida que quero viver.
Anos e anos atrás, enquanto estudava na especialização em expressão gráfica, fiz uma amiga. Ela me apresentou virtualmente um rapaz – um fofo, querido, inteligente e bonito – que era filho de uma das minhas ex-professoras de português no ensino médio. Começamos a conversar bem na época em que mudei de Porto Alegre para Goiânia, então nossas trocas envolviam longos e-mails em que relatávamos o que estávamos vivendo, pensando e sentindo.
Já que ele mora em Porto Alegre, mandei mensagem para ele por telefone. Ele tinha uma janela bem apertada disponível no mesmo dia em que me respondeu, coisa de uma horinha. O Tales de antigamente – que segue habitando em mim – já se levantou e disse “não, né? Só entre ir e voltar já vai levar no mínimo mais uma hora, melhor deixar para depois!”. Não era um pensamento ruim em termos de logística. Eu gosto de passar mais tempo com as pessoas, de não ter um teto predefinido.
Mas eu também gosto de ficar quieto em casa e arranjar desculpas para não sair, então decidi ignorar meu eu de antigamente e dizer sim para o encontro.
Foi super legal, comi um waffle de pão de queijo (como não amar comida no Brasil?), falamos sobre a vida e fiquei feliz de ver meu amigo. Depois encaixei um encontro com um moço dos aplicativos e ainda dei uns beijos.
Essa é a vida que quero viver.
Outro fruto da especialização em expressão gráfica – além da confiança para prestar a prova de mestrado, mudar para Goiânia e mudar minha vida inteira – foi um professor que o tempo, a abertura e a disposição transformaram em amigo querido.
Marcamos de jantar em um lugar novo aqui em Porto Alegre chamado Cais Embarcadero, uma espécie de food park gourmetizado – o que é um conceito estranho por si só, porque food park já é uma versão gourmetizada das feiras de rua que temos desde sempre. A única diferença é que as banquinhas têm rodas e os preços são inflados. Mas enfim, fomos.
Ou melhor, tentamos.
Os seguranças não deixaram meu amigo entrar porque estava carregando uma sacola com carambolas. Pelo jeito não é possível entrar no lugar levando comida. Ao que parece, logo que abriram não deixavam o povo entrar nem com garrafinha de água.
Acabamos na Casa de Cultura Mario Quintana – tem coisa mais Porto Alegre que isso? –, onde queimei a língua com um chocolate quente, e depois num bar de rua para comer um à la minuta enquanto trocávamos histórias de vida e reflexões sobre como funciona a mente humana. Contei para ele como é viver com afantasia e em troca ele me contou os desafios de escutar de um ouvido só.
Humanidade é mesmo algo, né?
Nem tudo são flores. Uma das minhas amigas mais próximas veio às pressas de São Paulo para Porto Alegre quando soube que o pai havia sido hospitalizado. Ele faleceu na madrugada de sábado para domingo, deixando um rombo no coração das pessoas ao seu redor.
No domingo, junto com outras amigas da época da faculdade, fomos à casa da família oferecer um pouco de afeto. Consolo, não há, mas estar com elas e conversar sobre vida e morte, fazer piadas e depois curtir momentos de silêncio em conjunto, isso foi o que pudemos oferecer.
Presença.
Na terça, minha amiga me escreveu: “tales, venha falar comigo? e perguntar de mim?”. Desde a noite de domingo eu não havia conversado com ela, perdido no meu próprio umbigo e até um tanto sem saber o que dizer. Mesmo em meio à dor, ela conseguiu me dizer o que precisava.
Presença.
Nos vimos de novo na quinta, caminhamos pela zona sul de Porto Alegre, vimos um pedaço do pôr-do-sol, conversamos. Não tem resposta possível para a morte, e enquanto lidamos com o luto, talvez a única coisa que realmente possamos fazer é celebrar com quem continua ao nosso lado.
Entre as conversas com minhas amigas, percebi que minha relação com Porto Alegre mudou. Agora que estou decidido a viver em Tóquio, começo a olhar minha cidade natal com um carinho que há muito me faltava. Por anos tive certeza que aqui eu não queria mais morar, nunca mais, de jeito nenhum.
Nesta viagem, percebi que poderia viver aqui de novo.
Ainda é cedo para dizer o que essa percepção vai bagunçar por aqui e que outras histórias podem estar plantando suas sementes no roteiro da vida, mas ficarei de olho. Posso morar onde quer que haja amor, e há amor em Porto Alegre.
Inclusive, lembrei dessa música:
Para quem não é de Porto Alegre, saiba que há toda uma série de canções dedicadas à nossa cidade. Quem gosta, gosta tanto que faz até arte.
Certa noite, encontrei um menino para tomar café. Menino é modo de dizer, porque o moço tem a mesma idade que eu. Nos conhecemos pelos aplicativos que homens gays usam para descobrir outros homens gays, conversamos e acabamos marcando o encontro para a mesma noite. Conversamos um tanto grande no bar – chamado Mal Assombrado, um lugar todo organizado na temática de terror – antes de seguirmos papeando na casa dele por mais algumas horas.
Trocamos várias histórias de vida, muitas delas com elementos em comum, especialmente no que diz respeito ao desenvolvimento da nossa sexualidade e a como lidamos com o mundo – somos ambos meio distraídos e tapados. Rimos bastante, foi uma noite bem divertida.
Em certo momento, olhei para ele e comentei que ele lembrava um amigo. Disse o nome. Ele pediu o sobrenome. Os dois foram bons amigos duas décadas atrás.
Porto Alegre é uma ervilha, todo mundo se conhece ou conhece alguém que conhece alguém. Isso é Porto Alegre ou é estar aberto ao encontro?
Antes de ir embora, ganhei esse postal maravilhoso porque contei que gosto de raposas.
Essa é sim a vida que quero viver.
Não precisa ser Porto Alegre, mas nesta semana foi e sou imensamente grato por isso.
Obrigado pela companhia.
Com carinho,
Tales